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Dicionário da História do Estado Novo – Fernando Rosas e J.M. Brandão de Brito
MARCELISMO
Designação atribuída ao período final do regime do Estado Novo, marcado pela acção de Marcelo Caetano como chefe do Governo (1968-1974), e que se caracterizou por uma tentativa falhada de auto-reforma das instituições.
É possível distinguir duas fases principais neste período: uma primeira, até finais de 1970, de relativa abertura e criação de expectativas liberalizantes, num quadro institucional de instável equilíbrio de poderes entre o chefe do Estado e o chefe do Governo e num clima político de adiamento de escolhas essenciais para o futuro do regime; uma segunda, até à revolução de Abril de 1974, de progressiva crispação repressiva, radicalização das oposições, e isolamento e degenerescência das instituições, em consequência do impasse colonial.
Com a substituição de Salazar por Caetano, o regime deixava, pela primeira vez, de obedecer a uma chefia única e incontestada, para se dividir em dois pólos de poder: um centrado no chefe de Estado, o almirante Américo Tomás, homem de confiança dos sectores ortodoxos; o outro centrado no novo chefe do Governo, de há muito conhecido pelos seus propósitos reformistas. E enquanto o primeiro se esforçava por manter um controlo vigilante sobre as iniciativas do segundo, este último tentava ganhar espaço de manobra para ensaiar reformas institucionais, económicas e sociais no âmbito de uma teia de compromissos constantes com as principais forças de apoio ao regime, compromissos esses que a breve trecho se revelariam paralisantes. Assim, num primeiro momento, Marcelo Caetano procura, por um lado, serenar os sectores ortodoxos através da garantia da continuação de uma política de defesa da ordem interna e da integridade dos territórios ultramarinos, e, por outro lado, atrair a simpatia de sectores liberais e tecnocratas com alguns sinais de abertura política e o empenhamento numa via desenvolvimentista: era a «renovação na continuidade», nas suas próprias palavras. Deste modo gerava igualmente algumas expectativas no seio da oposição moderada, enquanto a oposição de esquerda, mais céptica, permanecia atenta à possibilidade de explorar em seu proveito qualquer eventual abertura efectiva.
O abrandamento da censura, o regresso do exílio do bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, e de Mário Soares, a renovação da União Nacional, com a nomeação do liberal José Guilherme de Melo e Castro para a chefia da sua comissão executiva, e uma nova legislação sindical que dispensava da homologação ministerial as direcções sindicais eleitas, foram outras tantas medidas a suscitarem expectativas de abertura liberalizante, que a oposição democrática aproveitou para se reorganizar, promovendo em 1969 o II Congresso Republicano de Aveiro. Marcelo Caetano visava, em última instância, dotar-se de uma nova legitimidade por via das eleições legislativas* de Outubro de 1969, que plebiscitariam a sua liderança, conferindo-lhe um maior espaço de manobra. Porém, apesar da participação de várias personalidades liberais nas listas da União Nacional, o certo é que a campanha eleitoral decorreu com bastantes irregularidades e num clima repressivo e as eleições se processaram com base em cadernos eleitorais muito incompletos (27,7% do universo eleitoral), sem condições de igualdade para as candidaturas em presença e com dificuldades de fiscalização em muitos locais. A esmagadora vitória das listas da UN correspondia ao apoio de apenas 15% dos potenciais eleitores, dada também a abstenção de pelo menos 42,5% dos cidadãos recenseados. E enquanto a oposição se sentia defraudada e denunciava a «farsa eleitoral», os sectores ortodoxos do regime interpretavam os resultados como um plebiscito nacional à política de defesa do Ultramar.
Caetano limita-se, assim, a aproveitar a oportunidade para fazer finalmente uma remodelação governamental que lhe permite reforçar a componente tecnocrática nas áreas económica e social, sem ousar ir mais longe na assunção do poder, temeroso ainda da força dos «ultras» do regime e manietado pelo impasse colonial.
O reformismo marcelista manifesta-se então nas políticas de planeamento económico e desenvolvimento industrial, com João Salgueiro e Rogério Martins, de trabalho e segurança social, com Baltasar Rebelo de Sousa e Silva Pinto, e de ensino, com Veiga Simão.
Joga-se a fundo na integração europeia, na modernização tecnológica, na liberalização concorrencial e no planeamento económico, contra os velhos proteccionismos e o mito do «mercado único português»; na flexibilização do espartilho corporativista com o estímulo a estruturas sindicais e empresariais mais fortes, de forma a Impulsionarem o crescimento e os aumentos de produtividade das empresas, contra a malha repressiva tradicional, co-responsável pela estagnação e pelo atraso económico; numa reforma do ensino inovadora nos métodos e nos programas, na estrutura curricular, no alargamento da escolaridade e do sistema universitário, contra o imobilismo pedagógico.
Já no plano político-institucional, a acção dos novos deputados liberais, como Pinto Leite, Sá Carneiro, Miller Guerra, Pinto Balsemão, Magalhães Mota, esbarra com a oposição persistente da ortodoxia do regime e do próprio ministro do Interior, Gonçalves Rapazote, que mantém intactos os mecanismos repressivos e particularmente a estrutura e os métodos da polícia política, agora apelidada de Direcção-Geral de Segurança (). E nas chamadas «conversas em família» que o presidente do Conselho apresenta na RTP, a tecla da continuidade começa a sobrepor-se claramente à tecla da renovação.
Nos finais de 70, a balança começa a pender decisivamente para o prato do imobilismo. O poder marcelista é cada vez mais o lugar do vazio, espartilhado entre os dogmas dos «ultras», a incapacidade de encontrar uma solução para a questão colonial e as pressões dos grandes grupos económicos que procuram ditar a sua lei.
A revisão constitucional de 1971 acabará, assim, por ignorar todas as propostas apresentadas pela «», mantendo os traços essenciais do regime, apesar de algumas modificações formais, como a atribuição da designação de Estados às províncias ultramarinas. E a própria Lei de Imprensa, que tantas esperanças suscitaram, nada de substancial alterou ao regime de censura prévia até aí vigente. Acentua-se, ao mesmo tempo, a repressão sobre o movimento estudantil e o movimento sindical, bem como sobre o cooperativismo cultural. Os sectores liberais, em aliança com franjas moderadas da oposição democrática, tentam ainda a sua cartada com a criação, em Novembro de 1970, da Sociedade de Estudos para o Desenvolvimento Económico e Social (SEDES), logo apelidada de «cavalinho de Tróia» pelo deputado salazarista Casal-Ribeiro.
O grosso da oposição democrática irá, porém, denunciar o «fracasso do reformismo» marcelista num manifesto difundido em Maio de 1972 e encara com simpatia as primeiras acções de violência armada da Acção Revolucionária Armada (ARA), ligada ao , e das Brigadas Revolucionárias, ligadas à dissidência de esquerda que se apossara da Frente Patriótica de Libertação Nacional em Argel.
Em Agosto de 1972, Caetano perde a derradeira oportunidade de se assenhorear do poder, neutralizando os «ultras» do regime, ao renunciar à possibilidade de fazer eleger presidente da República uma personalidade que o apoiasse no esforço reformador. Ao aceitar a reeleição de Tomás, assina a sua definitiva capitulação, que precipita o rápido processo de degenerescência final do regime . De nada valerão as tentativas de revitalização da , na perspectiva das eleições de 1973, com o objectivo de a transformar numa «associação cívica de massas». A «» abandonara entretanto a Assembleia Nacional e fazia do novo semanário Expresso, fundado e dirigido por Pinto Balsemão, o seu principal órgão de intervenção. Nele se chegou a defender a criação de uma «terceira força» entre o regime e a oposição tradicional de esquerda, com base em sectores sociais «incipientemente politizados» e «pragmáticos» e nos desiludidos dos extremos colocados em «pontos estratégicos» da vida pública.
O encontro político organizado com esse fim em Julho de 1973 não teve, porém, qualquer sequência, dado o clima político cada vez mais radicalizado que então se vivia, mesmo nos sectores católicos, como ficara provado com o célebre caso da .
O próprio Caetano apelidará de «ingénuos» os partidários de terceiras vias (discurso de 24.6.1973), para um mês depois reconhecer em entrevista a uma revista estrangeira que decidira pôr «um travão ao processo de liberalização em Portugal» (dos jornais, 18.7.1973).
As eleições de Outubro de 1973 decorrerão, por conseguinte, nos moldes habituais, com a diferença de a oposição se mostrar desta vez bem mais unida, na sequência das aproximações realizadas entre o recém-criado e o o clima intimidativo superar o de 1969. A partir do Verão de 73, porém, surgem os primeiros sinais visíveis do profundo descontentamento que começara a lavrar no seio dos quadros intermédios das Forças Armadas. Está na forja o Movimento dos Capitães. A conjunção entre a contestação ao imobilismo da política colonial do marcelismo e reivindicações de carácter profissional revelar-se-á explosiva. Nem a cedência a estas últimas com um concomitante aumento de vencimentos, no princípio de 1974, conseguirá suster a movimentação em curso, cuja dimensão política se toma então cada vez mais evidente. A publicação, com o beneplácito do general , chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, do livro Portugal e o Futuro do general , com a defesa de teses federalistas para a solução da questão colonial, acentua o isolamento do governo de Caetano em relação às FA. O presidente do Conselho, sentindo-se acossado, num primeiro momento chega a propor a entrega do poder àqueles dois chefes militares, que, prudentemente, o recusam.
Tenta então um endurecimento de posições, mobilizando as instituições e a hierarquia militar em seu favor. A 11.3.1974 comunica ao presidente da República o apoio da AN. Três dias depois é a vez dos oficiais generais dos três ramos das FA lhe manifestarem o seu apoio, com excepção de , (#)Bagulho, que são de imediato demitidos das suas funções.
No dia seguinte nomeia novos ministros para as pastas económicas numa tentativa de contrariar os preocupantes índices económicos do último ano, com a taxa de inflação a rondar os 30%. E a 16, o Governo consegue fazer face à primeira tentativa sediciosa de oficiais ligados ao Movimento dos Capitães. O regime estava, porém, já ferido de morte. A própria Igreja Católica dava sinais de afastamento crítico. O poder marcelista era um poder com pés de barro. A revolução que o derrubaria e, com ele, o próprio regime, estava à porta. Em síntese, podemos afirmar que a guerra colonial não só acabou por impedir uma evolução liberalizadora e controlada das instituições, como conduziu o regime ao seu suicídio político, abatido que foi pelo seu próprio braço armado.
Caetano não soube ou não conseguiu ultrapassar o impasse colonial, apesar da demarcação que ainda ensaiou relativamente às teses integracionistas assentes num eudo patriotismo místico-geográfico (Portugal do Minho a Timor) e no mito do «mercado único português». Como resumiu Sottomayor Cardia, e apesar de alguns êxitos obtidos nos domínios económico, social e educativo, o marcelismo não conseguiu ser mais do que «um salazarismo disfarçado que rapidamente se tornou salazarismo desorientado» (Salazar, Abril e o Presente, 1985).
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